
1- Kontrollanalyse foi o primeiro nome que a prática da supervisão recebeu. Isto é: “análise de controle”.
Nos idos de 1915 a 1920, a psicanálise havia se tornado um “Movimento” e começava a fazer exigências para aqueles que a ela pediam ingresso. Entrevistas de avaliação, seleção de candidatos, escolhas feitas por colegas já pertencentes ao clube, baseadas em… Bem, aí temos um começo de problemáticas bastante complexas, geradas pela organização dos coletivos a partir da criação de um “estatuto”.
Aquilo que era espontâneo foi sendo formalizado com a institucionalização crescente, que, inevitavelmente, dava forma ao “Movimento”, a partir da construção de regras que, à primeira vista fortaleciam a higidez do processo, e buscavam demonstrar a seriedade do grupo que se formava, e se destacava intensamente tanto no mundo da inteligenzzia quanto no da ciência contemporânea.
No entanto, passado algum tempo, estas mesmas regras iriam, paulatinamente, dificultar em muito o estado emocional de todos os participantes da “Instituição” em seu convívio, deixando na mão dos instituídos, critérios de escolha, mas também, e principalmente, de expulsão dos membros que não estivessem “dentro” dessas regras. Mistura complexa: julgamento e psicanálise.
Essa atividade – análise de controle – foi introduzida na mesma época em que as Sociedades Psicanalíticas se tornaram centros de formação e se estruturaram, exigindo de alguma maneira que se cuidasse dos principiantes e de suas angústias na prática clínica, e se pudesse transmitir o conhecimento produzido por Freud e pelos fundadores da psicanálise, de modo zeloso.
Estava claro que, entre outras coisas, se queria vigiar a qualidade dos candidatos e garantir o aprendizado correto do que estava sendo transmitido no que tange a ética e a prática da psicanálise. A ideia era formalizar o ensino da psicanálise, porém, o passo para que a “análise de controle” se tornasse abuso de poder, foi inevitável.
O que se nota, ainda hoje, é que ao institucionalizarmos uma disciplina, criamos um campo emocional, derivado do próprio agrupamento de pessoas que não só compartilha seu pensamento e criatividade, mas que, infelizmente, compartilha violência e nadificação a um grau tão absurdo, que o agrupamento instituído se torna ávido, e se vê autorizado a ser cruel em nome da ciência, e o pensamento higiênico se transforma em ritual obsessivo, e em uma revivescência do parricídio, agora invertido em filicídio.
Não se poderia ter outro resultado: luta por poder e preservação de território, luta de grupos hierarquicamente rivais, o institucional ganhou seu corpo e exige seu lugar à mesa. Isto acabou por criar uma contradição no coração da transmissão: aquilo que deveria ser a criação civilizada de um campo próprio para o debate que visava entender a mente humana, acabou por abrir a oportunidade de transformar o pensamento em arma branca e os grupos em gangues. O que emergiu, mais que tudo, foi o convite ao confronto, e a um tipo de exercício violento da inteligência, principalmente no que tangem a astúcia, e não à verdade. Algo que me parece ser uma consequência desastrosa, crônica e não digerida, do próprio pensamento democrático aplicado em uma escala menor nos “Institutos de Psicanálise”. Do “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” não sobrou nem fragmentos dessas letras, e os conceitos, bem… os conceitos foram…
Creio que o que não se entende na ideia de democracia é que um homem – ou melhor todo agrupamento humano – perde a capacidade de pensar quando está diante do juízo moral do grupo ao que ‘pertence’, mesmo porque, o indivíduo e sua opinião só importa para o grupo quando ele for a favor do grupo e não do pensamento próprio.
Ou seja, aquilo que nasceu na mesa da sala de jantar de Freud … um grupo reunido, não hierárquico, discutia a mente humana, apoiado nos estudos primeiros que Freud se dispôs a compartilhar com amigos acadêmicos, curiosos e ansiosos por um novo tipo de pensamento que se desenhava quando se aproximavam da ideia da psicanálise… acabou por se transformar em um grupo imaturo, cheio de regras (desrespeitadas), hostil entre si, em constante estado bélico, competitivo, destrutivo e dominado pelo julgamento e não pela relação com a verdade e o conhecimento.
Isto, obviamente, introduziu a distinção de castas como hierarquia de ensino, e delimitava um campo moral de “certos e errados”, ou daqueles que estariam dentro da bitola exigida, ou fora dela! Ou seja, criamos categorias e as usamos como etiquetas de aprovação ou de punição, constituindo aqueles que são aptos a ser psicanalistas e aqueles que não. E esta distinção se desdobrou em exercício de poder e violência, e também de pressão política, com a concomitante constituição de um campo de batalha e juízo moral: os analistas didatas e os candidatos. Ou levou a FORMAÇÃO de analistas à uma formação de um universo de submissos e dominadores. Dos espetaculares e dos espectadores!
De qualquer forma, fica evidente que a institucionalização do “Movimento” levou a definição e a declaração pública de um caminho moral para que houvesse o aprendizado da psicanálise. Moral que poderíamos chamar de “freudiana”, ou discriminá-la como “o legado moral de Freud”.
No que isto implica?
Bem… Esta declaração constitui a fixação do campo da avaliação e do julgamento no centro da ideia de transmissão da psicanálise.
Em fim!
O inevitável viria à tona: inclusão e exclusão, promovidas pela via da avaliação que um grupo podia fazer da personalidade de um sujeito, não só os selecionando, mas sim os ‘escolhendo’! Ou seja, a escolha os retirava do campo dos selecionados e os remetia ao mundo dos aceitos pelos “eleitos”, transformando esses “aceitos” naqueles que, agora, foram “escolhidos”.
Com isto que acabo de apontar, indico que ‘O’ narcisismo, desde lá, mas ainda hoje, circunda e encerra muito a formação do psicanalista, e isto dá a ele uma ideia equivocada de poder, e, pior ainda, uma ideia errônea de que julgamento – usando a psicanálise como crivo – é escolha.
E é nesse terreno inseguro, e evidentemente perigoso, do julgamento moral, que a psicanálise segue sendo transmitida. É assim, nesse território, que todas a instituições de psicanálise espalhadas pelo mundo, seguem sendo um campo onde o juízo moral se tornou uma forma de abuso de poder autorizado pela instituição contra seus próprios membros.
Enfim, vigiar e punir! Ou “notas sobre a face moral da psicanálise”.
2- O problema –
Porém, o meu modo de ver – e aqui não vai mérito nenhum além da crítica acerba – a psicanálise e o aprendizado da mesma, demanda compreende-los como um modo particular de articular formas de transitar por áreas outras que não só as que o caminho formal oferece. Psicanálise é, antes de qualquer coisa, uma ‘educação dos sentidos’.
E, claro, para que os sentidos se eduquem há formas, que eu até as denominaria de benjaminianas, e as conectaria com a ideia do flâneur de Baudelaire, em seu livro “Flores do Mal”. Ou poderia liga-las ao pensamento de Nietzsche – principalmente as ideias que ele desenvolve sobre o “perspectivismo”. Este é o caminho dos que são mestres de si mesmos.
Sendo ela, a psicanálise, uma fonte de formas de olhar a vida, que são de outro teor de entendimento, que não o juízo moral cotidiano, formas que são de outro teor de aprendizado, de outra qualidade de aproximação de um fato. Uma espécie de desenvolvimento na sofisticação da observação, um entrelaçamento entre olhos, ouvidos, emoções, tato (contato), é o mínimo que se espera do preparo de um psicanalista em formação.
Vamos usar uma imagem:
O que se espera de um Samurai? O que se espera de um espadachim de elite, de posse de sua Katana? Se espera que ele desenvolva formas cada vez mais complexas de observar um fenômeno e de executar uma ação precisa, livre da decisão vinda de um eu e concentrado na execução precisa do movimento. Bion adverte, temos que desenvolver habilidades para podermos entrar no estado de “atenção flutuante”. Ele indica que o caminho para alcançar “atenção flutuante” implica em privar-se de memória, desejo e necessidade de compreensão usando fatos da realidade.
Sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão: é assim que se empunha a espada.
Ou seja, psicanálise pode ser uma luta, uma batalha, e um treinamento para essa batalha. Nela há instrumentos que devem ser usados, de tal forma, que cada psicanalista saiba manejar com destreza e de olhos fechados sua espada, que é a interpretação bem-feita e limpa, pelo corte preciso.
Posso usar outra imagem:
Psicanálise é andar a esmo, é perder-se… E… é observar essa errância. É isto que torna urgente que possamos desenvolver nossa relação com o inesperado, com a descoberta surpreendente. Porém, é preciso que façamos coisas distintas que ao final irão fazer uma composição. Isto é, ao mesmo tempo em que vamos encontrando diversas coisas caminhando com nossos pés, devemos ir fazendo a via-crúcis, isto é, o caminho institucional. É no meandro desses dois fluxos que o aprender ocorre, e o sujeito torna-se um psicanalista. Um caminho é feito no campo em que os dominadores oferecem saberes aos dominados – o que não é de todo ruim. O desconforto vem do cativeiro e do peso moral nas costas… Mas se aprende. O outro é na lida do dia a dia, na rua, na sola do pé.
Como eu dizia, sem a construção cuidadosa dos sentidos, sem uma construção rigorosa, um exercício continuo de aprender a perceber, aprender a olhar, aprender a ver, aprender a escutar não haverá isso que se denomina psicanalista, e, menos ainda, o que se denomina psicanálise.
Ouçamos Byung-Chul Han, em seu texto “A Sociedade do Cansaço”, onde comenta e cita Nietzsche:
“No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche formula três tarefas, em vista das quais a gente precisa de educadores. Devemos aprender a ler, devemos aprender a pensar, devemos aprender a falar e a escrever. A meta desse aprendizado seria, segundo Nietzsche, a ‘cultura distinta’. Apender a ver significa ‘habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si”, isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento. Esse aprender-a-ver seria ‘a primeira pré-escolarização para o caráter do espírito’ (Geistigkeit). Temos de aprender a ‘não reagir imediatamente a um estímulo, mas tomar o controle dos instintos inibitórios, limitativos’. A falta de espírito, falta de cultura repousaria na ‘incapacidade de oferecer resistência a um estímulo’. Reagir de imediato e seguir a todo e qualquer impulso já seria uma doença, uma decadência, um sintoma de esgotamento. Aqui, Nietzsche nada mais propõe que a revitalização da vita contemplativa. Essa vida não é um abrir-se passivo que diz sim a tudo que advém e acontece. Ao contrário, ela oferece resistência aos estímulos opressivos, intrusivos. Em vez de expor o olhar aos impulsos exteriores, ela os dirige soberanamente. Enquanto um fazer soberano que sabe dizer não, é mais ativa que qualquer hiperatividade, que é precisamente um sintoma do esgotamento espiritual.” (pp. 51 – 52, ed. 2017 Ed. Vozes, RJ)
Educar os sentidos, aprimorar-se em todos os campos: artísticos, científicos, filosóficos e místicos (místico, talvez, não seja uma palavra boa para nos referirmos a um campo espiritual, religioso e ligado ao mistério. Aqui quero apenas frisar o que está possivelmente conectado a uma respiração, a um sopro, a algo que poderia estar ligado a uma intuição da verdade, do futuro e do infinito).
A meu ver, psicanálise é como artesanato, cuja matéria é a verdade, o mistério e sua interpretação, e não o julgamento, a avaliação, a comparação e a hierarquia. Estamos trabalhando com uma contradição: o premeditado/imprevisível. Isto exige um complexo equilíbrio entre intenção e abandono de si – abandono técnico que busca na ausência borrar as fronteiras do eu, para, justamente encontrar a nudez dos eus em sua simplicidade e originalidade.
Enfim… Psicanálise é, ou deveria ser, uma prática que se tem que aprender olhando, mexendo, tentando, fuçando, experimentando… e… e… fazendo supervisão. Isto é: tendo um interlocutor que pretende apenas pensar junto com você, sem te impor modo, método, regra e como fazer. Um companheiro para um encontro curto em que se busca iluminar algo com um “facho de escuridão”.
Psicanálise é como aprender a pintar porcelana; a tecer uma rédea e uma sela para cavalgar; é como fazer instrumentos musicais; como construir, com maestria, um arco para lançar flechas; como jogar um futebol de craque; como esculpir estátuas; como pintar quadros… enfim, psicanálise se trata de treino e trabalho contínuo. Dedicação e perseverança, em direção ao futuro desconhecido – desejado e temido – em direção ao horror e ao êxtase da descoberta inesperada, inevitavelmente contido pela aproximação triste e dura da realidade.
Psicanalise precisa de jornada, de chão percorrido, de errância, de paciência e de extrema dedicação. Merece também que seja praticada com elegância, com cuidado, com gratidão.
Para realizar esse aprendizado, é hábito que se busque mestres. É só disto que estou falando. Quando há um desejo de saber, é comum que se busque alguém que sabemos que sabe, e que ainda tenha vontade de transmitir a arte de sua prática, e a paciência necessária para fazê-lo. E, é necessário também, um outro alguém que, ainda jovem, se interesse em aprender, e esteja nessa busca.
Mas esta não é a ideia ensejada e cultivada pelas associações de ensino da psicanálise. A transmissão da psicanálise, foi substituída pelo “ensino” da psicanálise, e o famoso tripé da formação analítica se tornou um jargão que apenas indica que a burocracia venceu o gesto espontâneo, uma vez que foi a burocracia o que deu contorno à instituição, não foi a beleza da psicanálise que se usou para fazê-la ensinar-se de sua própria forma.
É urgente que se deva proceder uma reavaliação e uma mudança de rumo que pudesse esclarecer melhor o que ensinar é na psicanálise. Pois é de ensinar sem ter nenhuma intenção de fazê-lo, que se trata de uma transmissão da e na psicanálise.
E se a burocracia pudesse ceder lugar ao aprender sem “professores”, nós poderíamos aprender junto de nossos mestres, nosso ofício que não se ensina. Um mestre é aquele que pode nos facilitar ver que o ofício está sob um manto teórico que revela pouco a complexidade da prática, pois é ela, a própria prática o que nos desafia e faz buscar algo que se convencionou chamar psicanálise, mas ainda não se sabe bem do que se trata.
É disto que se trata a prática denominada “supervisão”. E, supervisionar, se trata de buscar mestres que possam acolher o início do exercício da prática de alguém que postula se tornar um psicanalista.
Entendam, para que este fenômeno possa chegar a suceder é preciso que alguém nos acolha, e não pretenda nos educar como se fôssemos animais adestráveis, ansiosos pela chibata (apesar de sermos isso também).
Para qualquer um que está começando a caminhar pelo chão da psicanálise, fazer supervisão é uma busca ativa por alguém de quem se deseja estar diante de.
Alguém que inspira, cuida, incentiva e demonstra sua própria arte, quando você, que o procura, sente falhar a tua capacidade de achar o gesto espontâneo que deveria vir, enquanto você pratica.
Nunca troque supervisão por indicação de paciente. Nunca faça supervisão como astúcia política. Apesar da Instituição ser a parte política da psicanálise, não é na Instituição que se aprende a clínica. A clínica é domínio da transmissão de uma arte, da transmissão de um saber pensar, e de um saber fazer. E o único fazer em Psicanálise é ético e não político.
Há algo de ingênuo no pensamento que deseja cooperar, há algo frágil em termos que desenvolver, além da esperança e da hospitalidade, termos o trabalho de alcançar a fé na capacidade de pensar a observação partir da perspectiva da psicanálise. Por isto digo que há algo de puro em se pensar que podemos ser colaboradores. É belo pensar nas ideias de companheirismo, de hospitalidade e de elegância no gesto de fazermos pão juntos. Não há necessidade de falar, há só importância pura da presença pura e da pura presença.
Estarmos com, não costuma ser algo que seja incentivado na prática da transmissão da psicanálise nas instituições internacionais, tampouco naquelas instituições autofundadas e autodenominadas psicanalíticas.
Há, na transmissão da psicanálise, a necessidade de se compreender que ela, a psicanálise, é um tipo de ensino que exige do aprendiz escolher, se dirigir e passar por um mestre.
Porém a ideia de supervisão borra essa questão porque esbarra na ideia de controle, e deforma a essência psicanalítica da transmissão psicanalítica.
O âmbito antipático, arrogante e pretencioso que impera nos espaços institucionais de transmissão e veiculação do saber analítico, beira à estupidez que é mesmo própria aos agrupamentos humanos. A Igreja, o Exército e a Aristocracia continuam sendo os padrões arraigados capazes de nos tornar eichmanianamente burocráticos, extremamente dóceis, extremamente obedientes, extremamente cruéis, perfeitamente cruéis, polidamente cruéis. Isto é, fantasiados de adultos, crianças violentas assumem o poder e constituem um ambiente regredido, que usa uma ética precária, digamos uma ética pulsional, primitiva, ligada aos gozares dos deuses punitivos, que sempre temos próximos de nós e os evocamos como recordação compulsiva que transforma privação fortuita, aleatória, em intencionalidade, frustração causada propositalmente para satisfazer o gozo de um mestre mal.
Analista didata, candidato, supervisor, supervisionado. Escalonagens, regras, postos, hierarquias, castas, subdivisões, obediências… tudo isto deveria ser substituído por conexão, atenção flutuante e livre associação, e, no aprendizado da clínica, amizade, tato e empatia. E ponto. Chega dessa burrice de “manda quem pode, obedece quem tem juízo!”
Psicanálise é não hierárquica, não pedagógica, não didática… no entanto é necessário que possamos reconhecer suas características de oficio que exige transmissão, e esta “transmissão” exige a presença essencial do mestre, daquele que entende da forja, do fogo, dos metais, das misturas e das composições possíveis entre dureza e flexibilidade, para que haja em nossas lâminas a precisão do corte.
Seja como for, se uma formação institucional reduz os psicanalistas a palhacinhos adestráveis, seria melhor que a Instituição saísse de cena e deixasse que o movimento psicanalítico retome seu estado original de um grupo errante, à mercê do encontro entre os pares apenas para pensar, não para exibir as penas.
3- Um souvenir:
Bion resume uma relação de anos com um esquizofrênico, paciente seu:
“Não posso dedicar-me a uma descrição detalhada de como ou por que cheguei às qualidades que estou prestes a atribuir ao objeto evacuado. Os significados da categoria F podem ser expressos aproximadamente como se segue: ‘a chave, aquilo que dá potência e é ela mesma capacidade ou potência, foi embora. A vida (coming-ejaculação) do leiteiro poderia me dizer as horas – seis horas. A hora, seis horas, poderia me dizer que o leiteiro estava vindo. A ejaculação do leiteiro (a vinda) poderia me dizer as horas e me alimentar. Mas nenhuma dessas coisas acontece. A chave foi perdida; elas foram despojadas de seu significado. Sei que é porque sou autossuficiente, porque posso alucinar uma refeição, um tempo, uma ejaculação e tudo mais que preciso. Então, a partir dos objetos evacuados (alucinações na opinião do analista) posso conseguir todo o sustento mental e físico que necessito. Mas sou incapaz de conseguir tal sustento. Obviamente, portanto, o que você, analista, chama de psicanálise é simplesmente seu método de roubar o sustento de minhas alucinações, deixando-me sem uma chave, enquanto você é capaz de sentir quão superior é sua psicanálise e como você é perspicaz. Você só faz que ela pareça assim por roubar o bom das alucinações de maneira que elas pareçam ser fezes mentais e a psicanálise se torne algo bom’.” Bion, W. R. Transformações: mudança do aprendizado ao crescimento; tradução de Carlos Heleodoro Pinto Affonso, et alli. Rio de Janeiro, Imago, 1983 p 156)
Isto …” corresponde às características de avidez que é também capaz de crescer e florescer extraordinariamente por se suprir a ela própria com irrestritos suprimentos de nada.” (Idem, ibidem, p 159)
O que é isso aí?
Então…
Uma interpretação, um ensaio rabiscado de um tipo de escuta, uma revisitação de um encontro com um paciente psicótico, que não distinguia o mundo de fora e o mundo de dentro da sessão, sessão esta que estava tendo com Bion, seu analista à época, que podia ser também o leiteiro que estava deixando o leite na casa onde Bion tinha seu consultório.
É ainda possível observar que em uma psicose o entorno faz parte do inconsciente…
Tenham bons sonhos, tenham bons surtos!
4- A poética:
“Cântico Negro
(de José Régio)
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!”
José Régio (1926)
Emir Tomazelli
04 de novembro de 2024
TOMAZELLI, Emir. kontrollanalyse, supervisão e análise de controle: política e po-ética. In: SILVA FILHO, E. A.; BINKOWSKI, G. I.; ESTEVÃO, I. R. Princípios Psicanalíticos de supervisões e controles. Cachoeirinha: Fi, 2025.