
O tema sobre o qual vou falar, trata do efeito do afeto dentro da sala do psicanalista, tanto quanto na vida humana do dia-a-dia. E também fala da contraditória mirada dos Institutos de Psicanálise sobre a questão da emoção do analista.
É a partir do ponto de vista contemporâneo que a técnica será pensada, e, portanto, vamos falar sobre como desenvolver capacidades para pensar em situação de estresse e de turbulência emocional enquanto estamos nela. Este é o campo onde se desenvolve a clínica – que poderia ser chamada a “clínica da surpresa” ou a “clínica da presença” – e a minha intenção central é, mais uma vez, procurar contrapor a clínica real àquela clínica, que é uma idealização da clínica, feita pelos colegas obedientes ao que é institucional: não existe nada mais desastroso que a obediência. Na obediência às regras, o pensamento está morto.
- Provocação:
Leio Bion para vocês –
“A análise do psicótico oferece a oportunidade de ver o que significa trabalhar estando insano. Deve-se fazer uma distinção no emprego dos termos ‘psicótico’ e ‘insano’; um analisando pode ser psicótico e insano, bem como psicótico e são. É útil admitirmos um tipo de progresso analítico que vai da psicose insana à sanidade psicótica.” [Bion, p. 133, Estudos Psicanalíticos Revisados, Imago, 1988]
Deixo a frase para que vocês possam digeri-la sozinhos!
Não cuido do afeto que há nela, nem do afeto que ela pode gerar em vocês. Abandono a todos a esse dito que abre minha fala.
Afinal, qual seria a função da neutralidade se não fosse fazer alguém se sentir abandonado ao seu próprio destino?
E isto me leva a outra questão:
– O desamparo ensina?
Ferenczi achou que o desamparo da neutralidade era abandono, e traumatizava o que já estava traumatizado. Ferenczi pisou e repisou esse assunto em sua eterna queixa endereçada a Freud, pelo descuido deste em relação à transferência negativa, e aos componentes agressivos presentes na relação deles dois. Tanto que sugeriu que a ética da distância (o “estilo interpretativo”[1], de Freud) fosse substituída pela ética do cuidado (o “estilo empático”[2], de Ferenczi). Apontou insistentemente que não seria de todo mal, que os psicanalistas pudessem falar a verdade com seus clientes. Era necessário que fôssemos, todos nós analistas, capazes de reconhecer nossos erros diante do cliente. Isso poderia trazer mais chances à cura, e facilitar o andamento de mudanças na relação entre o sujeito e seu objeto. Em uma palavra, Ferenczi convocou a todos os psicanalistas a não serem hipócritas, e motivou-os a encenarem com os clientes a dança das transferências. Percebam a sutileza: eu transfiro, você improvisa e interpreta.
Mas os afetos do analista seguem sendo algo que encontra impedimento, que encontra rejeição intelectual, algo que encontra resistência em ser admitido como parte da experiência do tornar-se psicanalista. A perturbação e a turbulência da sala de análise seguem sendo uma questão sem saída para todos nós. E, curiosamente, ela não diminui se evitarmos percebe-la, tanto quanto se evitarmos aceitá-la.
2-
E o que dizer dos afetos, da dor e da experiência?
Bem, os afetos são o chão da vida. Neles estão a dor mental e a experiência.
E o adoecimento?
Bem, o adoecimento é a vida.
E a vida: o desassossego, o desespero, a angústia, a aflição, o desejo, o ódio, o amor, a ternura, o rancor, a desilusão, a esperança, o desinteresse, a apatia, a loucura, a mania, a paranoia, o anseio pelo que vai nos tirar daqui, o anseio que pelo que nos vai prender aqui… a busca da felicidade…
A repetição dos problemas, a repetição dos temas narrados nas consultas, a inquietação com a não mudança, mesmo que o trabalho em dupla seja árduo e constante. Enfim… Adoecer de si. Adoecer por não saber traduzir e transformar emoção em gesto, em encenação, em sonhos, em palavra e em conhecimento. Inibições profundas assolam os psiquismos durante sua construção. E essas inibições estrangulam afetos que necessitam circulação, estagnando-os. Eis o adoecimento! Eis a vida parada na fila da penúria!
A perplexidade, o descontentamento, o desconhecimento do próprio sofrimento, o pequeníssimo saber que conseguimos ter sobre nós mesmos, e o desejo encarniçado de ignorar a si, e a tudo. Muito pouco das histórias, das narrativas, dos relatos revelam o que, de fato, foi feito de nós ao longo de toda jornada. Quem vem falar de si para mim não percebe o quanto se desconhece, mesmo que seja o único que pode me comunicar algo sobre o mar de escombros onde se encontra. O mito do júbilo do nascimento, pode ser facilmente substituído pela palavra catástrofe. Aquele que fala, mal sabe de quem fala, nem sabe quem é o falante que se apresenta ao analista. Algo faz movimentos com o aparelho de fonação e supõe estar falando, mas por vezes descobrimos, meses depois de uma atenta e árida escuta, que o ser que falava pelo aparelho fonatório do cliente era um superego materno cruel, e sem amor, um fragmento de sua personalidade cindida, que trazia uma criança pela qual ele não queria ser responsável, e, a denegria, ali, na hora da fala, diante do olhar estarrecido do analista.
Não há nada na memória além de equívoco e restos desconexos. A fala esconde o que revela porque tem eco, e o eco dificulta a localização da fonte sonora. Quem ouve fica perdido, e quem ouve o que alguém lembra e não sabe em que tempo se encontra a fala, não sabe o que é estar em trânsito, nem o que é estar morto num tempo morto. Quem lembra, fixou-se. Dali não pode se soltar. Voltar, se torna um dever. Se torna uma pulsão, pulsão de retorno, compulsão à repetição.
Mesmo que voltar possa ser apenas o caminho para o nosso desaparecimento, ou o nosso retorno ao ponto onde não existíamos, ou o retorno ao lugar onde estávamos antes de nascer… Ainda assim, evoco Ferenczi, e procuro na regressão uma tentativa de recuperar as forças e as condições que haviam em Thalassa, o mar primitivo de onde todos viemos. A pulsão de repetição, em Ferenczi, pode ser aquilo que te dá, mais uma vez, a chance de começar uma vez mais. Mas, mesmo assim, seguimos voltando para evitar, o presente, e o traumático.
3-
Não foi inocentemente que os humanos, primeiro imitaram o som dos animais que iriam comer, antes de comê-los. O som intencional vem daí, e depois, nossa fala vem daí. Ela vem da necessidade de matar aquele que ouve o som que eu imito. Vem da necessidade de captura-lo, e devora-lo, para saciar a fome que o humano tem. Isto acaba abrindo nossa mente para todo um universo de astúcia e predação. O som mata a fome do homem. Depois, o som mata o homem: não vamos nos esquecer que Wagner era tocado nos fornos nazistas, instantes antes da incineração das almas judias.
Olhando por outro vértice, é bom que lembremos que o ouvido não têm pálpebra, ele é vulnerável, sua única proteção é o autismo. Não há esfíncter auditivo!
Além disso, falamos, mas não sabemos o que estamos fazendo com o falar. Não notamos que o falar é um fazer, e que esse fazer gera enormes emoções nos que estão a nos ouvir, porque elas, as palavras e as emoções, saem de nós como projeções de ansiedades e de sentimentos brutos, que vão impregnando o outro a quem nos dirigimos, levando o ouvinte a um estado, que, por vezes se poderia chamar de psicótico. A fala exerce uma ação sobre o audiente, exerce uma força de fascinação sobre a audiência. O som toma o corpo, o coloca em ação ou o estanca. Diante do som somos mais obedientes, somos ob-audientes. Obedecer tem sua origem etimológica em ob-audire no latim[3]. Por isto mesmo é bom que diferenciemos ouvir de escutar.
E, por não ter pálpebra, nada protege nosso ouvido. Apenas um estado amental pode vir a ser capaz de cessar o efeito do som em nós, o efeito dos afetos sonoros em nós. Mesmo nas pausas, também sofremos. Nosso silêncio interno repleto de sonoridades, diálogos, discussões, guerras entre gangues, brigas entre tendências antagônicas, vozes de conselheiros sábios ou estúpidos… Nosso silêncio povoado, é um centro gerador de angústia. A clínica está forrada de ignosias e ignorâncias, isto é, de desconhecidos informuláveis, e de não conhecidos em vias de serem formulados, mas ainda aguardando formulação. Como fazê-los ser palavras, representação e simbolismo?
A clínica está cheia de impossibilidades da formulação dos des-conhecimentos, cheia de defesas contra o conhecimento – aqui se pode falar algo sobre o problema da contratransferência, e sobre a necessidade de ignorar como forma de não experimentar nada do acontecimento vital.
A clínica está cheia de silêncios que deveriam indicar, a nós que estudamos os mares emocionais, que há áreas sem nenhuma presença humana, sonora, imagética ou criativa, não há música, não há dança, não há teatro, tanto quanto não há pinturas ou esculturas; são áreas onde nenhum sinal de humanidade se indica e manifesta. É ainda mundo mental, mas seu estado é o vazio infinito e sem forma. Estas áreas, muitas vezes, são campos onde a emoção se mineralizou. Campos de um inconsciente profundo onde o homem jamais poderá ir ter contato com o que, apesar de tudo, é ainda seu. Aí não há mais nada que se possa perceber. Estamos fora do espectro que alcançamos. Os afetos mineralizados são seus únicos restos, que, pelo limite psíquico em traduzi-los, ficam sem direção, estagnados, soterrados.
Há momentos em que os afetos são apenas um choque. E esse choque não é sequer percebido, mas é registrado como terror sem nome, e é suficiente para gerar uma dor mental que se registra em forma de silêncio, em forma de uma perda emocional irrecuperável. Ou, pior de tudo, se registra como nada. Este é o auto traumático, onde o outro não é necessário para criar a machucadura, mas ainda é necessário para curar uma dor.
4-
Bem…
“Nem sempre falar quer dizer.” Como lembrava o psicanalista francês Sèrge Leclaire[4]. Eis aí uma boa razão para se poder discriminar, dentro de uma sessão o que vale ser ouvido. Como o arqueólogo, o analista, escavando os sons da voz, vai discriminar os cacos de todas as eras dos sons que estão ali na fala. Mas, em algum lugar, quando a fala termina, começa um outro trabalho do analista, um trabalho do afeto, do sentir com, da regressão psíquica agora usada como técnica. É assim que se entra no mundo da escavação e da sideração. É aí que o nada se abre para o deserto, e é aí que devemos, convocar a intuição, e faze-la construir uma brecha no inaccessível, porque há um ponto na investigação das paixões da mente humana, onde a experiência deixa de ser símbolo e imagem e se transforma apenas em dor desconhecida – cintilações esparsas, fragmentos flutuando em vácuo. É sobre esse resíduo vago, que talvez possamos construir algo, alguma morada para o pensamento, e alguma ponte imaginária sobre o lugar onde a terra mental se separou e fez um fundo vale, uma funda ruptura.
Nossa oferta é pequena para a dor inominável.
Mas já ouvi também, de um cliente meu, que eu salvei a vida dele. Ou que, pelo menos, salvei a vida daquele a quem ouvi. Foram vinte anos, e ele foi muito grato ao que eu pude oferecer a ele, e mais que tudo, ao que ele pode fazer com o que tentei fazer para ele. Foi ele que se deu o direito de adoecer diante de alguém, o direito de afetar-se, e de afetar àquele que junto caminha. Eis aí uma proposição para o trabalho de cura.
Abrir-se para dar conta da experiência emocional daquele sujeito que se encontra com o analista, como mais um sujeito subjugado à força do sintoma. É bom que fiquemos atentos para a realidade que nos indica dia após dia que um sintoma não fala, ele apenas se repete e se mantém escondido do sentido, do significado, e de uma possível tradução. O sintoma se abriga em nós, ele não quer nada, ele quer a si mesmo, quer a sua monotonia. Um sintoma não nos leva em conta na operação de cuidado. O sintoma quer o que ele quer, e nós, raramente, estamos incluídos nisso, a não ser como executores subservientes. É por essa razão que a vida emocional não cabe facilmente nos fluxos de associações feitas com as palavras. Por vezes penso que meus ouvidos falam mais comigo do que aquilo que o cliente me diz, e raramente sei a quem estou ouvindo. Não sei se é o cliente que fala ou se é meu ouvido que me fala o que ele fala. Já notei também que fico surdo, ou dito mais precisamente, meus ouvidos param de falar comigo quando algo me atinge inesperadamente na sessão. Tento manter ouvidos e lábios cerrados, e me dou conta que esse evento pode ser um tipo de adoecimento do analista! Aí se abra uma possiblidade de cura.
As repetições por anos e anos de uma mesma queixa apontam que o material com o que estamos lidando não é solúvel em qualquer saliva, menos ainda em qualquer sopro. E muito pouco reciclável pela mente treinada do analista.
Transformações, sobre transformações, geram mais transformações. Sem invariâncias as observações cessam. E o analista fica à espera. A espera de algo. Convivemos com nossos clientes, por um longo tempo, em completo desconhecimento, a espera de algo. E sabemos que não se trata de desvendar os fatos escondidos, mas sim manter a mente aberta para seu próprio mistério. Um mistério a ser descoberto incompleto, fragmentado, parcial infinitamente até o final de nossos corpos.
5-
Hora da consulta. Os momentos que a antecedem. O cliente chegando. E a emoção vindo… O analista chegando… O mar emocional se arrebenta na fachada do psicanalista. Mar e pedra. Mar em luta contra a pedra. E se fosse mar x mar, afeto x afeto, adoecimento x adoecimento, dor x dor… experiência… enfim. Quais seriam nossas chances de fazer uma dor curar outra dor?
Alguém chega até mim e eu me pergunto:
– QUEM SOU EU QUANDO VOCÊ CHEGA?
Bion sempre se perguntou sobre o que estaria acontecendo na sala de consulta quando dois animais pré-históricos e selvagens se trancam dentro dela? Bion mesmo dizia que quem não suportasse o calor do forno e do fogão, não deveria trabalhar na cozinha.
Eu creio que isso vale para quando trabalhamos com a dor gerada pelo desconhecido, e com a dor gerada pelo que se viveu. Dois tipos de dor, dois tipos de temperatura a serem reconhecidas e experimentadas. Ou seja, sentir dor mental é uma capacidade a ser desenvolvida da mesma forma que o cozinheiro se treina nas temperaturas da cocção. E, no caso desses dois profissionais, suportar dor não é apenas o sinal de uma inversão do sentido sádico da pulsão para um sentido que é masoquista. A dor, no caso da clínica, e a capacidade para senti-la, são uma condição necessária ao conhecimento, e é ao conhecimento que o encontro analítico se faz abertura e busca.
O tempo clínico, por vezes, se estende sobre a longa extensão de um único dia. Tenho uma cliente, há 25 anos trabalhando comigo, e nós dois nos encontramos no primeiro dia em que nos conhecemos. Não que ela não tenha mudado, pelo contrário, mudou muito, mas a análise segue naquele dia, segue no mesmo dia em que ela se referiu a ela mesma como um sintoma.
Qual lógica poderia haver no tempo analítico, que não apontasse para o tempo clínico como um dispositivo que pode reavaliar a tolerância que temos ao que escutamos.
O tempo que envolve receber alguém que fala para nós sobre si, é um outro tempo, é um tempo contraditório, sobreposto, pantanoso/fascinante, vivo/morto, ativo/imóvel. É um tempo encharcado, lento, intransponível, que, no entanto, transcorre em uma velocidade inimaginável. O agora é eterno, tanto quanto o inconsciente é infinito. É o tempo do ‘acontecidoanidaacontecendo’, é o tempo onde os eventos concluídos não terminam, mesmo porque não se sabe onde começaram, e menos ainda para onde estão indo.
6-
Uma palavra sobre o rosto.
A desfiguração do rosto do analista deveria ser estudada no momento do encontro, durante o encontro, e depois dele. Creio que não seria impossível verificar que o rosto não é mais o mesmo que havia quando estava em solidão, nem é o mesmo quando o cliente chega, e, menos ainda, quando, depois da sessão, volta ao repouso novamente. É necessário estudar como somos afetados. Não se pode esquecer do poder de turbulência que uma presença outra gera em qualquer um de nós, principalmente quando alguém vem até nós pedir que o ouçamos. O entrecruzamento das temporalidades vividas, se chocam com os momentos do agora e com os momentos que nos aguardam no futuro. O encontro psicanalítico pesentifica todo esse espectro de acontecimentos naquilo que notamos como estado emocional do encontro, e que forma a atmosfera psíquica da sessão. O tal do afeto, afeta efetivamente.
Não é pequeno o poder que a mente tem de transportar um resto emocional de qualquer ponto da vida mental, para o presente do encontro, de tal forma que o visto se torna alguma coisa que está sendo revista, reexperimentada, modificando o que é aprendido por um olho comum pronto para ver o agora. Esses malabarismos mentais e a mistura da projeção de imagens com a recepção delas, faz com que vejamos no presente o acontecido, ou o acontecido no presente, e, assim, ficamos sem saber se nossos olhos produzem a imagem vista ou somente a captam. E isto nos limita para ver e saber do real, fazendo-nos perder a noção dos tempos e dos sujeitos que estão em cena. Não podemos desconsiderar que uma lembrança pode destruir uma imagem real, e, a destruição do agora se consuma num jogo de tempos, de figurabilidades e de pantomimas que dão forma estranha ao encontro com o não saber com o não sabido, com o desconhecido.
A travessia do deserto das almas é penosa para todo analista, e, em sua jornada narrativa sobre a dor ouvida na clínica, o analisa carrega a aflição de andar sem rumo, do nada para lugar nenhum, sempre num emaranhado de emoções e representações inconscientes. Porém, mesmo que tudo pareça parado na cena do encontro, há uma grande turbulência que indica a presença humana, e esta, mesmo imperceptível, se espalha sobre o momento justo em que um pede ajuda ao outro. Quem ouve o pedido, se colocando em um campo de uma abertura radical diante da alteridade, sem saber como, nem por que, se vê coagido a oferecê-la. Momento tenso, angustiante, turbulento… Aí está a demanda de um outro, a demanda que nos convoca a oferecer ajuda, como resposta inconsciente à alteridade que nos convoca a partir do rosto que nos mira. O divã nos protege!
É a convocação do outro à quem vamos atender. É a demanda de mim aberto para o outro. É a evocação dos primeiros tempos do surgimento da alteridade, tempos em que um humano foi cuidado por outro humano[5] e se salvou da morte, uma vez que, se fosse abandonado, certamente, não sobreviveria. É este homo sapiens aquele que abriu espaço para o grande acontecimento, é este o momento onde algo de inesperado surgiu, e, é onde, talvez, tenha tido início não só a civilização, como os seus desdobramentos: o cuidar, o receber o hospedar o forasteiro que pede morada e acolhida reconfortante. Isto, então, se tornou uma qualidade do “humano”, mesmo que possamos conservar o medo do ataque que possa vir do exterior.
Na análise se repete este momento! É aí que o tempo nos conecta ao encontro ancestral, e reafirma a marca humana: vida é cuidado. É isto o que abre, para todos nós, a possibilidade de existir, e indica, que, sem o cuidar, a civilização não é possível, nem a psicanálise!
7-
De alguma forma a psicanálise está em busca de “outras coisas” que não estão na cena consciente, mas estão lá. É como no velho conto – ‘A carta roubada’ – de Edgar Allan Poe. A carta está ali, exposta diante de todos, mas ninguém a vê, tão óbvia que é. E isto me faz lembrar de uma afirmativa de Bion, de que o inconsciente também pode ser “o óbvio não observado”.
Creio, porém, que a psicanálise esteja também em busca de coisas além da investigação da realidade e da solução de problemas, porque ela investiga também o ‘algo’ que só a fala faz com quem a escuta. A palavra nos lança em cenários multitemporais que não terminam de passar, nem cessam de acontecer. Algo está, ali, se repetindo e pedindo a oportunidade de obter algum sentido, ou forçando para que o sentido se destrua. O psicanalista raramente sabe a favor de que causa está trabalhando. Essa ambiguidade, essa dubiedade, esse estar “entre coisas” é difícil. Lidar com ele, se torna o tormento essencial que nos castiga. Isso poderia nos fazer pensar que um tipo de sintoma do próprio psicanalisar. No entanto, por exercício do juízo moral se acaba nomeando como desvio, erro, psicopatologia. Porém… Temo que seja apenas o estado comum de duas mentes funcionando.
Não esqueçamos que o adoecimento humano também está ligado ao trágico fato de nossos impulsos – levados às últimas consequências da definição freudiana de pulsão – não se interessarem por nós, não considerarem se vamos ou não permanecer vivos após sua realização por nosso ego. Freud indicou inúmeras vezes que os impulsos cuidam da própria satisfação, visam a simples realização deles mesmos, sem medir as consequências que causarão a nós. Olhada assim, nesta perspectiva, a situação de adoecimento pode surgir quando alguns de nós percebem o terror que é viver dentro de um lugar onde a descarga do impulso mental tem prevalência sobre a vida do sujeito. Desejo sempre soberano, logo, sujeito subjugado, afetado e adoecido.
8-
Voltando ao problemático jogo das presenças emocionais em cena na clínica, e tentando elaborar o temor da perda de controle e da perda de identidade durante o atendimento de seus clientes, um analista treinado deve estar atento a algo que se poderia chamar de contracenar automático. Este corresponder em ação à presença do outro, pode ser considerado um campo mais perigoso na condução de uma sessão. A resposta emocional que envolve pantomima e reação ‘inconsciente’ teatralizada no interior do encontro, uma vez que nele se instala por via do enactment, deve ser levada em conta.
Sem que se note, acontece uma espécie de contradança em nossos corpos quando nos encontramos com outros corpos. A postura e os gestos do outro que se apresenta diante de nós, interferem diretamente nos gestos, nos humores e nos comportamentos do parceiro que está na outra ponta da cena: isto é o analista. Esta força de encenação (enactment[6], em inglês) é frequentemente despercebida, e puxa o encontro para um tipo de palco e de bailado inconscientes, de consequências imprevisíveis. Por isso todo analista deve cuidar de discriminar a experiência emocional de estar diante do cliente, da sua própria experiencia emocional de ser ele mesmo. E deve cuidar de, nem sempre, dançar conforme a música.
Além disto, deve cuidar de perceber se as atitudes que ele está prestes a ter, não estão sendo derivadas da reatividade criada pela presença do cliente. E deve tentar perceber se, na verdade, elas não são apenas um estado pantomímico correspondente à insanidade do paciente que chegou. Afetos, adoecimentos, imitações e perturbações de identidade! Uma clínica da modernidade? Não ceio.
9-
Não é incomum que a contratransferência, além de um problema, seja também um processo do conjunto de proteções (Fédida, P. 1996)[7] que o psicanalista tem para se defender da invasão emocional causada pela chegada do cliente, preservando um certo reagir narcísico que protege o ego-terapêutico do colapso e do devoramento completo pela personalidade demandante de cuidado e atenção.
Enfim, como dizia meu professor de italiano?
“Per capire qualcosa, bisogna diventare matto tenendo la testa à posto.”
Tradução livre – “Para compreender qualquer coisa, é preciso ficar louco, mantendo a cabeça no lugar.”
Dito de outra forma, quando os afetos estão presentes eles tomam a cena e a dominam, dificultando que a inteligência e a criatividade imaginativa possam achar meios para pôr esses afetos no mundo das formas simbólicas.
Por isto, é necessário saber se a reação do analista não é sinal de que ele está, narcisicamente, se defendendo da insanidade do paciente ou de sua própria insanidade.
Tenho comigo que, pelas razões expostas ao longo do texto, temos que passar a pensar, qual é o estatuto da sinceridade, da verdade e do afeto, que estão no âmago da cena analítica. E aí, mais uma vez o afeto e o adoecimento apontam para a dificuldade em estarmos expostos àquilo que arranca o analista de seu lugar de neutralidade, quando assume a responsabilidade de se dedicar ao trabalho turbulento no contato com a transferência, quando se dispõe a aceitar a dura experiência de lidar com dor mental, e de ficar exposto às projeções e introjeções, que enfiam e arrancam coisas da e na mente do profissional, enquanto ele, severamente abalado, ouve.
Mais uma vez advirto a aqueles que creem que ouvem: fiquem atentos, vocês podem estar apenas obedecendo. E a obediência, é um desastre, como disse no início desta apresentação.
Então, eu recomendo:
Cuidado com a voz que se ouve. As sereias falavam e cantavam…
E Ulisses temia ouvi-las! E, com os ouvidos cheios de cera, ainda as ouviu!
Muito obrigado.
Emir Tomazelli
20 de abril de 2024
[1] Kupermann, Daniel Por que Ferenczi? Zagodoni 2019. P. 92
[2] Kupermann, Daniel Por que Ferenczi? Zagodoni 2019. P. 92
[3] O Ódio a Música Pascoal Quignard. Editora Rocco 1999.
[4] Mata-se uma criança, Editora Zahar 1977
[5] Mead, Margareth
Years ago, anthropologist Margaret Mead was asked by a student
what she considered the first sign of civilization in a culture.
The student expected Mead to talk about fish hooks or clay pots or grinding stones.
But no, Mead said that the first sign of civilization in an ancient culture was a femur (thighbone) that had been broken then healed. Mead explained, that in the animal kingdom, if you break your leg, you die. You can not run from danger, get to the river for a drink or hunt food. You are meat for prowling beasts. No animal survives a broken leg long enough for the bone to heal. A broken femur that has healed is proof that someone has taken time to stay with the person who has fell, has bound up the wound, has carried the person to safety and has tended the person through recovery. ‘Helping someone through difficulty is where civilization starts’ said Mead.
We are at our best when we serve others. Be civilized.”
][6] Quando existem palavras, elas servem como instrumentos de descargas ou formas de expressar afetos que envolvem emocionalmente o interlocutor. A palavra funciona como ato, em que “dizer é fazer” (Austin, 1990). Trata-se de formas de rememorar através de sentimentos (memory in feelings) e comportamentos colocados em cena no campo analítico. Como no enactment ambos os membros da dupla estão envolvidos (sem dar-se conta), o conceito vai para além do acting-out e do Agieren freudiano, descritos como pertencendo ao paciente.
[7] O Sítio do Estrangeiro – Pierre Fédida; tradução de Eliana Borges Pereira Leite, et ali – São Paulo: Editora Escuta, 1996)